Comunicação sem voz
Bagunça era o cachorro que se sentava diante da porta quinze minutos antes de alguém voltar da rua, pontual e impassível. Não errava uma, mesmo chovendo, trânsito engarrafado ou greve de ônibus. Ele sabia. Não sei se era cheiro, vibração ou essa tal telepatia emocional que alguns defendem. Mas era real. Bastava olhar nos olhos dele para entender que alguma coisa estava sendo dita, mesmo em silêncio.
Os animais têm instintos e sentidos muito aguçados, percebem vibrações da terra antes de terremotos ou enchentes e conseguem diagnosticar algumas doenças humanas através do olfato. Há quem acredite que tudo é energia, e que os animais estão mais sintonizados com esse fluxo do que nós, distraídos pela internet e pelos brinquedos do mundo. A verdade é que os animais carregam um tipo de sabedoria intuitiva que não se ensina, somente se compartilha. Eles nos observam com olhos que, aos poucos, vão moldando seus hábitos aos nossos. Aprendem horários, reagem ao tom da nossa voz, entendem gestos e suspiros. Associam tristeza com colo, ansiedade com porta fechada e felicidade com passeio. Não porque entendam nossa língua, mas porque sentem o que vai dentro da gente.
No entanto, há um preço nessa convivência tão íntima. Quando o lar está em crise, eles adoecem. Refletem nossas angústias e excessos. Alguns até esquecem de ser bichos. Passam a viver como gente, dormindo em camas, usando roupinhas, vendo tv e tendo até redes sociais. Perdem o faro da natureza, o instinto de matilha. Em troca, ganham crises que não sabem nomear.
Enquanto isso, os gatos nos olham de canto, meio superiores, um pouco distantes, como quem diz: "não me peça para ser mais do que sou".
Eles resistem. Talvez saibam haver limites na relação entre espécies, e os respeitam. Ainda assim, essa troca silenciosa persiste. Um cão não precisa de palavras para saber quando precisarmos de companhia. Um gato, quando resolve deitar ao nosso lado, talvez diga mais que mil conselhos. É nessa ausência de palavras que reside o mistério: os animais compreendem o que esquecemos. E nos lembram, todos os dias, que existe afeto sem linguagem e comunicação sem voz.
Ronaldo Rocha -
Médico veterinário e jornalista.
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