Quando o silêncio late
Tem coisas que a gente finge que não escuta. Como aquele barulho estranho na casa ao lado, o canto funesto do urutau ou um distante latido na neblina de Cãodinópolis.
Era um silêncio atroante que não vinha de um canídeo qualquer, mas de algo fantasmagórico que gelava a espinha e dava vontade de chorar, sem saber por quê.
Parecia ser uma daquelas velhas histórias para deixar a gente com medo — tipo o homem do saco ou a loira do banheiro. Mas, com o tempo, vi que o latido não era exatamente sobre o medo, era sobre o silêncio ensurdecedor.
Em Cãodinópolis, o tempo parecia imutável. Rituais antigos eram seguidos à risca e qualquer desvio era visto como um insulto à tradição. Nada se perguntava e nada se respondia. Tudo “sempre foi assim” e pronto.
Mas aí o Border collie Lord achava que não era bem assim. Rosnava quando mentiam, uivava quando calavam. Era tido como um cão contestador, o herege de quatro patas, o que rompia com a cumplicidade do silêncio.
Lord era o símbolo da denúncia, da presença que insiste em ser ouvida mesmo quando fingem não escutar.
Ao latir, denuncia não somente o que era dito, mas o que é escondido pela omissão coletiva.
Então, fizeram o de sempre com os que pensam diferente: apagaram-no. Sem violência explicita, mas com o cruel castigo do abandono, do exílio social. Não é preciso matar para controlar, basta invisibilizar.
Hoje, quando a cidade fica silenciosa demais, se ouve um latido baixo, uivante, distante, quase sussurrante. Não sei se é real, pode ser só saudade do silêncio que não ouvi.
Ou quem sabe é o ignorado Lord, lembrando que o silêncio também é escolha — e que há momentos em que calar é uma forma de violência. Na sociedade de Cãodinópolis o silêncio não é só paz, também é conivência com a sujeição. Omitir-se muitas das vezes é tomar partido.
Mas há outros Lords por aí, uivando na neblina, na esperança de que alguém escute, ou, quem sabe, também resolvam latir.
Ronaldo Rocha - Médico Veterinário UFRRJ/Jornalista ABJ
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