quarta-feira, 4 de junho de 2025

Predadores da Própria Moral

Predadores da própria moral

Ocupamos múltiplos níveis na cadeia alimentar e, dentre os predadores, somos os mais temidos. Que diga o boi, o carneiro, o porco e até o sofrido jegue, que, após uma vida de labuta, tem sua carne pendurada para secar.
Sofre também o ganso, entupido de comida até o pescoço, fazendo seu fígado hipertrofiar até doze vezes o tamanho original, produzindo o "foie gras", o patê esteatótico do paladar francês.
Cobaias são sacrificadas em prol da indústria farmacêutica e cosmética. 
Coelhos, ratos, gatos, porquinhos-da-índia e até cães são mortos em prol da ciência, dos laboratórios e da vaidade humana. 
No Pantanal, a caça imoral coloca a onça-pintada na beira do precipício, enquanto o tráfico de animais silvestres os arranca brutalmente de seus habitats.
A violência contra os animais não se limita à gastronomia e aos laboratórios. Nos lares, o desrespeito é voltado aos cães. Segundo a "Humane Society International", em famílias marcadas pela violência doméstica, os animais são frequentemente maltratados, violentados ou mortos. 
Na agroindústria, o sofrimento é sistemático: seres sencientes são torturados até o abate, suas lágrimas são transformadas em lucro. 
Os animais, quando causam dor, fazem-no pela sobrevivência, seguindo as leis da natureza. Já o ser humano, dotado de consciência e capacidade de escolha, pratica a crueldade movido por ganância, futilidade e prazer. 
No entanto, à medida que a sociedade evolui, cresce também a consciência sobre o impacto dessas práticas e a necessidade de mudança.
Como afirmou Schopenhauer: "A assunção de que os animais não possuem direitos e a ilusão de que nosso tratamento para com eles não possui significância moral são um ultrajante exemplo de inumanidade."
Se a compaixão é a única garantia de moralidade, então talvez precisemos, sem demora, revisitar nossos valores.
Ronaldo Rocha - Medicina Veterinária UFRRJ / Jornalista ABJ

Quando o Silêncio Late

Quando o silêncio late

Tem coisas que a gente finge que não escuta. Como aquele barulho estranho na casa ao lado, o canto funesto do urutau ou um distante latido na neblina de Cãodinópolis.
Era um silêncio atroante que não vinha de um canídeo qualquer, mas de algo fantasmagórico que gelava a espinha e dava vontade de chorar, sem saber por quê.
Parecia ser uma daquelas velhas histórias para deixar a gente com medo — tipo o homem do saco ou a loira do banheiro. Mas, com o tempo, vi que o latido não era exatamente sobre o medo, era sobre o silêncio ensurdecedor. 
Em Cãodinópolis, o tempo parecia imutável. Rituais antigos eram seguidos à risca e qualquer desvio era visto como um insulto à tradição. Nada se perguntava e nada se respondia. Tudo “sempre foi assim” e pronto. 
Mas aí o Border collie Lord achava que não era bem assim. Rosnava quando mentiam, uivava quando calavam. Era tido como um cão contestador, o herege de quatro patas, o que rompia com a cumplicidade do silêncio.
Lord era o símbolo da denúncia, da presença que insiste em ser ouvida mesmo quando fingem não escutar.
Ao latir, denuncia não somente o que era dito, mas o que é escondido pela omissão coletiva.
Então, fizeram o de sempre com os que pensam diferente: apagaram-no. Sem  violência explicita, mas com o cruel castigo do abandono, do exílio social. Não é preciso matar para controlar, basta invisibilizar.
Hoje, quando a cidade fica silenciosa demais, se ouve um latido baixo, uivante, distante, quase sussurrante. Não sei se é real, pode ser só saudade do silêncio que não ouvi.
Ou quem sabe é o ignorado Lord, lembrando que o silêncio também é escolha — e que há momentos em que calar é uma forma de violência. Na sociedade de Cãodinópolis o silêncio não é só paz, também é conivência com a sujeição. Omitir-se  muitas das vezes é tomar partido.
Mas há outros Lords por aí, uivando na neblina, na esperança de que alguém escute, ou, quem sabe, também resolvam latir.

Ronaldo Rocha - Médico Veterinário UFRRJ/Jornalista ABJ

Perfume de sangue

Perfume de Sangue

Desde os primeiros passos humanos, convivemos com um inimigo discreto, quase invisível, que nos fareja com maestria ancestral. 
Os mosquitos ceifam vidas em silêncio, matando mais do que as guerras. Um milhão de mortos anualmente. Cinquenta bilhões ao longo da história humana. Parece uma maldição biológica que acompanha a humanidade.
Muito antes de nós, Homo sapiens, os Homo erectus já eram farejados por esse minúsculo assassino. No âmbar do Líbano, repousam fósseis de 130 milhões de anos no período Cretácico. Interessante é que são machos hematófagos que, atraídos pelo perfume das árvores, ficaram eternizados na resina.
Eles nos escolhem pela cor da roupa, pelo calor do corpo, pelo bailar invisível do dióxido de carbono que exalamos ao expirar. Se deliciam com o ácido lático do nosso suor e não resistem a certos aromas da pele. Possuem células nasais que decifram fragrâncias com precisão mortal.
Só as fêmeas do Aedes sugam sangue, buscando suas vítimas ao amanhecer e ao entardecer. Ficam mais ativas na lua cheia, parecendo pequenas vampiras.
Nossa pele exala uma substância conhecida como "decanal", é derivada do ácido sapiênico, um perfume exclusivo da pele humana, que para elas é irresistível.
 Talvez um dia possamos usar esse aroma como isca, desviando-as de nós. Quem sabe silenciar seu olfato afiado, desligar seu “GPS químico” e, assim, conter as terríveis zoonoses que os mosquitos espalham pelo mundo.
Enquanto isso, seguimos exalando o perfume que elas adoram e, pontuais e precisas, vêm buscar nosso sangue para maturar seus ovos.
Ronaldo Rocha - Médico Veterinário UFRRJ/ Jornalista ABJ

Comunicação sem voz

Comunicação sem voz

Bagunça era o cachorro que se sentava diante da porta quinze minutos antes de alguém voltar da rua, pontual e impassível. Não errava uma, mesmo chovendo, trânsito engarrafado ou greve de ônibus. Ele sabia. Não sei se era cheiro, vibração ou essa tal telepatia emocional que alguns defendem. Mas era real. Bastava olhar nos olhos dele para entender que alguma coisa estava sendo dita, mesmo em silêncio. 
Os animais têm instintos e sentidos muito aguçados, percebem vibrações da terra antes de terremotos ou enchentes e conseguem diagnosticar algumas doenças humanas através do olfato. Há quem acredite que tudo é energia, e que os animais estão mais sintonizados com esse fluxo do que nós, distraídos pela internet e pelos brinquedos do mundo. A verdade é que os animais carregam um tipo de sabedoria intuitiva que não se ensina, somente se compartilha. Eles nos observam com olhos que, aos poucos, vão moldando seus hábitos aos nossos. Aprendem horários, reagem ao tom da nossa voz, entendem gestos e suspiros. Associam tristeza com colo, ansiedade com porta fechada e felicidade com passeio. Não porque entendam nossa língua, mas porque sentem o que vai dentro da gente.
No entanto, há um preço nessa convivência tão íntima. Quando o lar está em crise, eles adoecem. Refletem nossas angústias e excessos. Alguns até esquecem de ser bichos. Passam a viver como gente, dormindo em camas, usando roupinhas, vendo tv e tendo até redes sociais. Perdem o faro da natureza, o instinto de matilha. Em troca, ganham crises que não sabem nomear. 
Enquanto isso, os gatos nos olham de canto, meio superiores, um pouco distantes, como quem diz: "não me peça para ser mais do que sou".  
Eles resistem. Talvez saibam haver limites na relação entre espécies, e os respeitam. Ainda assim, essa troca silenciosa persiste. Um cão não precisa de palavras para saber quando precisarmos de companhia. Um gato, quando resolve deitar ao nosso lado, talvez diga mais que mil conselhos. É nessa ausência de palavras que reside o mistério: os animais compreendem o que esquecemos. E nos lembram, todos os dias, que existe afeto sem linguagem e comunicação sem voz. 

Ronaldo Rocha -
Médico veterinário e jornalista.

Onde dorme o medo

Onde dorme o medo

Criaturas aterradoras vagavam noite adentro em Cachoeiras de Macacu desde tempos imemoriais.
Em cada canto esquecido, histórias assombradas emergem da escuridão. Falam de disformes híbridos, cuspidos de alguma fenda aberta na epiderme da realidade, arrastando-se entre o palpável e o imaginário.
O Baku, no Japão, é um glutão esfomeado por sonhos humanos. É um quimérico medonho, formado pelos fragmentos de grotescas criaturas. Vagueia invisível sobre a cama dos que dormem, devorando com avidez seus sonhos perturbadores.
Se em terras distantes o Baku devora os pesadelos, em Cachoeiras, outras criaturas se alimentam do silêncio da noite e as histórias rastejam como heranças malevolentes. Há quem ainda jure que, nas gélidas madrugadas de inverno — que acordam os cachorros antes do galo cantar —, um cortejo de penitentes embalado por deprimentes cânticos se arrastava pelo leito onde passou o trem, até a aprazível Boca do Mato.
O lobisomem cachoeirense não era irreal, era autêntico: tinha carne, tinha cheiro, tinha tez pálida e também parentesco. Seu nome era sussurrado, quase inaudível, entre os dentes cerrados da população.
Na Boa Vista, uma mula descabeçada vagava à procura de sua cabeça decapitada, sua jugular jorrava lamento em lugar de sangue.
O desatento cavaleiro, que ousasse passar tarde da noite pelo escuro bambuzal do Boqueirão, sentia o baque repentino de um pequeno menino em sua garupa. O moleque era lodoso e frio como pedra de rio. Nem reza braba conseguia abrandar o arrepio e o silêncio interrompido.
Essas histórias se revelavam nas rodas de conversas, entre mordidas na mariola "Banassuit" e tragos ardentes da cana de banana "Banadrink".
Realidade e lenda são faces de uma mesma sombra. Em silêncio, compartilham o que carregam.
Suas histórias não precisam de testemunhas, bastam-se com o medo que semeiam.

Ronaldo Rocha - Médico Veterinário UFRRJ / Jornalista ABJ

Filhos da fome


Nos confins do tempo algo escapou das entranhas do mundo. Não era besta e nem homem, mas um exército de seres invisíveis — os Parasitas Sombrios.
Não rugem, não voam, não uivam à noite. Eles não  falam, eles entram silenciosos, rastejam para dentro do corpo pela da boca e pelo sangue. Encravam-se na mucosa do intestino, sugando o néctar vital e espalhando suas fezes ali mesmo, no festim do suco digestivo No intestino bebem não só o suco intestinal, mas também o sangue.
Os parasitas externos não se escondem: carrapatos que grudam como cola,  pulgas que se multiplicam como febre, sarnas que deixam a pele do animal em pandarecos. 
Dizem que, quando a infestação é grande, o animal não dorme, não come, fica pálido como um lobisomem.
Mas o mais temido de todos é o Carrapato mãe, uma criatura que geram centenas de filhos que já nascem sedentos por sangue. Um só banquete e a febre se instala. A doença do carrapato é mais que doença: é o espírito quebrado, a alma arrastada, corpo em frangalhos pelas exaustão. 
Mas entre todos há um que reina com crueldade: o grudento carrapato. Reza a lenda que sua picada leva consigo mais que dor — leva a febre, a tristeza e a morte da 
Dizem que, ao beber o sangue, a fêmea grávida carrega consigo a maldição, transmitindo-a a cada ovo que gera. E assim, geração após geração, o ciclo do mal se perpetua.
O homem não está a salvo desses parasitas e seus malditos nomes: leishmaniose, febre maculosa, borreliose, Lyme, doenças que marcham junto com a morte, de forma lenta e impiedosa.
E assim, entre sombras e sangue, a lenda dos parasitas segue viva. Pois onde há vida, dizem, há também aqueles que dela se alimentam.
Ronaldo Rocha - Médico veterinário UFRRJ /Jornalista ABJ

Parabéns. Cachoeiras de Macacu

Parabéns, Cachoeiras de Macacu

Em 15 de maio, o tempo fez uma pausa para aplaudir você.
Terra amada, onde o verde abriga os sonhos, o rio espelha a alma, e a brisa neblinada carrega lembranças — como folhas soltas na aragem da saudade.
Você não é só um ponto no mapa: é lar, é afeto, é abrigo e poesia.
Em seu leito, trilhos de ferro conduziram sonhos, rasgaram montanhas e uniram destinos.
O lento “Rápido” e o nostálgico “Expresso”, mesmo devagar, deixaram ecos na sua memória — em cada estação esquecida, em cada dormente adormecido.
O batuque dos carnavais e os confetes coloridos ainda vibram com o tempo em que navegava, em sua nau, o lendário pirata Calixto.
Às margens da encachoeirada água do velho Macacu, você é mais que lugar: é sentimento que na serra tem abrigo, é o majestoso jequitibá — altaneiro e altivo.
És mais que chão: és poesia que o ar respira. És memória e liberdade. És amor que não se tira.
E, nestes 346 anos de existência, celebramos com exaltação tudo o que você foi, é e ainda será.
Que venha o futuro, com novas conquistas embaladas pelo amor do povo que você acolheu.
E quem sabe, talvez um dia, entre tuas montanhas e vales, o apito do velho “Jaú” volte a soar — não apenas sobre a bitola estreita do seu caminhar, mas sobre os trilhos da esperança que há de te abraçar.
Feliz aniversário, Cachoeiras.

Ronaldo Rocha - Médico Veterinário - UFRRJ / Jornalista - ABJ

A carraça escarlate



Dizem que, bem antes do homem aparecer, das fronteiras e das guerras, algo se ergueu das entranhas ardentes da terra.
Um sopro escuro irrompeu pelas raízes do mundo, trazendo com ele os parasitos do caos.
Entre eles, um se alçou como soberano do sangue, o temido Carrapato.
E ao seu lado, entre pele e febre, reina a carrapata Escarlate. Mãe das febres e senhora das infestações. Marcha, onde o mato ardeu e o solo se perdeu, seguida pelas larvas vis, vindas de ovos contaminados, ungidos pela febre maculosa.
Sua prole é um frenesi de alucinados famintos por sangue.
Onde a floresta se cala, eles marcham. Onde a vida recua, eles dominam.
O carrapato se alimenta do fogo, do gado solto, do pasto desmatado e do cachorro sem cuidado. Seu ciclo de vida sempre recomeça. Silencioso. Invisível. Implacável.
O bicho não corre, não pula. Tampouco voa. Paciente espera. Como promessa partida. Como praga esquecida.
O carrapato é um aracnídeo, parente próximo da aranha, ácaro e escorpião.
A mãe Carrapata gera centenas de filhos num só parto. Sua prole nasce aos milhares, de um só ventre, espalhando-se como poeira maldita. E cada vez que o calor aumenta e o pasto some, ela volta mais forte, como se vingasse a terra ferida.
Os micuins são larvas tão pequenas que o olho mal pode ver, até que já seja tarde demais.
Uma picada, a febre. Outra, a fraqueza. Mais uma e o corpo cede.
O mal não respeita cercas. Nem muros. Nem espécies. A gente menos ainda.
Maculosa. Anaplasmose Babesiose. Lyme e Erliquiose são suas principais zoonoses.
Se uma coceira aparecer e a febre subir depois de um passeio no mato, tenha cuidado, um carrapato pode estar em seu corpo agarrado.
O mundo vive em ciclos de infestações. Cada vez que os sinais da terra são ignorados, retornam para reequilibrar o pulso vital. A matriarca Escarlate é sempre a primeira a voltar. Onde a vida pulsar, lá ela estará.
Ignorada, ela volta. Alimentada, ela reina. E quando reina, pode até matar.
O carrapato é como o mundo. Nunca foi embora de verdade.
Ronaldo Rocha - Médico veterinário UFRRJ/Jornalista ABJ.

O olhar que rasga a máscara


Há quem diga que os animais veem o que nossos olhos já esqueceram.
Que escutam o que silenciamos, percebem o que ainda não sabemos nomear.
Sentem o que não dizemos. Leem o que tentamos esconder.
Em muitas tradições, acredita-se que alguns animais conseguem perceber nossas emoções e a energia que carregamos. Possuem uma sensibilidade aguçada, que vai além do palpável, da palavra. Percebem dimensões da existência que escapam à racionalidade humana.
Cães e gatos, por exemplo, captam alegria, bondade, tristeza — e até a maldade disfarçada de gentileza. Dizem que percebem o que escondemos até de nós mesmos. Sentem antes que saibamos. Leem entre os silêncios.
Nobres de alma e profundos no olhar, os cavalos são usados em terapias por sua capacidade de espelhar o interior humano. Não julgam, apenas refletem.
Também os golfinhos são associados à cura e à conexão emocional profunda, atravessando com leveza os oceanos turbulentos das emoções humanas.
Corujas, lobos e águias, guardiões de sabedorias ancestrais, são vistos como seres que enxergam além do tempo e da matéria.
Os animais respondem à nossa luminescência interior — à energia sutil que emitimos — porque percebem quem realmente somos. Seus olhos rasgam as máscaras que vestimos no cotidiano. Sentem nossa luz, sua ausência e até o esforço que fazemos para mantê-la acesa.
Aproximam-se quando estamos em paz e se afastam quando opacos de nós mesmos, mergulhados em nossos conflitos internos.
São atraídos pela presença serena, pela autenticidade, pela verdade. E se retraem diante da dissonância entre o que mostramos e o que somos. Para eles, a verdade não se disfarça.
Os cães percebem quando alguém se aproxima com intenções que não ressoam com a nossa energia. E quando somos atacados por forças do malévolo — densas, escuras, invisíveis.
Alertam, mesmo sem palavras. Protegem, mesmo sem promessas.
A borboleta carrega um dos sinais mais pujantes.
Ela emerge da ruptura. De uma criatura rastejante, nasce algo leve, livre e belo.
Aproxima-se de nós quando estamos em transformação. Sua presença é um anúncio sutil de renascimento.
É o arquétipo vivo da metamorfose.
Quando as asas de uma Lepidoptera batem ao nosso redor, talvez seja para lembrar que algo em nós está pronto para voar. 
Será isso intuição, ou algo mais antigo que a linguagem?
Ou será que, no fundo, eles apenas nos enxergam como realmente somos?
Ronaldo Rocha 
Médico Veterinário/
Jornalista