segunda-feira, 1 de setembro de 2025

O amargo beijo de Bejeca

É agosto... acho. O calendário… escorregou para dentro do copo. E eu… não consegui mais ler. Dizem ser nesse mês o Dia Internacional da Cerveja. Ou… da Bejeca. Vai saber. O tempo… ah, o tempo… esse velho bêbado… cambaleia entre goles, sob a luz âmbar do bar, onde vozes borbulham em cada mesa. E eu? Brindo com a deusa Ninkasi. Sim… ela existe. Sedutora. Densa. Enganadora. Já a vi dançando sobre a espuma… cabelos de lúpulo, olhos dourados como cevada amarga. Ela não anda. Não baila. Não fala… apenas sopra espumas nas palavras. Faz o sonho parecer verdade. E a gente acredita. A primeira vez que senti seu frescor foi numa garrafa esquecida — chocada pelo gás que evaporou. Da união incestuosa de Enki, deus d’água, com Ninti, deusa do lago, nasceu Ninkasi — meio espuma, meio sombra — soprando promessas que o Humulus lupulus amarga. Talvez por isso a cerveja carregue essa ambiguidade: É santa… e profana. Cura… e envenena. colo… e precipício. Na Suméria, hoje Iraque, enquanto calculavam eclipses, os sábios caíam de joelhos diante dela. Não para rezar, mas para esquecer. Entre paredes de barro e barris, a cevada fervia. E Ninkasi recolhia, gole a gole, os segredos de quem bebia. Hoje… ela veste um colarinho de espuma — a assinatura do lúpulo, amargo o suficiente pra lembrar que alegria demais é perigosa. Prefere mesas de bar, luz vermelha a piscar, onde as confissões vêm fáceis e a vergonha se dissolve num piscar. Fruto de um amor proibido, nasceu meio sombra, meio espuma. Ninkasi brinda com os que escondem lágrimas: os poetas bêbados, os vagabundos lúcidos, os santos caídos, e as damas da estrada. Na Baviera… reina em tronos de madeira e canecas de litro. No Brasil… tropeça nas calçadas e assassina nas estradas. Por aqui, o álcool mata mais que as guerras e dirige… mais que os motoristas. Eu mesmo… voltando de Canudos — Bahia — fui colhido na BR pelo hálito etílico de um inconsequente. E entendi: Ninkasi não é deusa. É esfinge. Não concede respostas. Rouba perguntas. Mas quem sou eu pra julgá-la? Não sou padre. Nem pastor. Sequer juiz. Sou veterinário. Andarilho. Sou copo: ora vazio de ilusão, ora transbordante de paixão. E mesmo sabendo dos perigos… eu brindo. Porque a vida, meu amigo, também é ambígua. Talvez, no fundo, o que a deusa nos oferece não seja a bebida, mas a vertigem controlada — no vago êxtase da madrugada — quando tudo o que nos resta é um gole. Um gole… e um sonho. Então… levante o copo. Mesmo que seja o último. Que Ninkasi… nos beba. Eu? Só bebi um pouquinho. Hic!… Urgh! Mais um gole… e pronto. Arroto… e viro poeta. Mas amanhã… nem lembro da rima. E nem quem foi ela. Hic! Médico veterinário e Jornalista

domingo, 31 de agosto de 2025

A dor que ninguém quer ver

A dor que ninguém quer ver É tão fácil fingir que não vemos. Fechar os olhos como quem apaga a própria consciência. O pior dos cegos é aquele que escolhe a sombra. Eu mesmo já fiz isso. Na mesa farta, o cheiro encobre segredos. O frango que virou galeto, o ganso forçado a engolir além do corpo, o boi, o carneiro, o porco — existências inteiras servidas como prato. O paladar festeja, mas o coração mastiga também a angústia de cada vida interrompida. E a dor não para aí. Há ratos, coelhos, gatos trancados em jaulas invisíveis — cobaias da vaidade que insiste em engarrafar juventude. Nas florestas, onças desaparecem como brasas que se apagam. Do céu, arrancam pássaros para a clausura de grades. E dentro de casas silenciosas, onde deveria haver cuidado, animais tremem diante de mãos que ferem. A crueldade não é acidente: é hábito. É máquina. Engrenagem que transforma lágrima em lucro. E nós seguimos, distraídos, como se fosse natural. O que dói é lembrar que só nós carregamos este peso chamado moralidade. Nenhum animal inventa pecados. Nenhum maquina maldade. Eles apenas vivem. Somos nós que escolhemos ferir. Schopenhauer sussurra: “a compaixão universal é a única garantia de moralidade.” E eu acredito. Mas acreditar é também sangrar — porque abrir os olhos é deixar-se atravessar. É aceitar que cada vida importa, mesmo quando não nos pertence. Ignorar a dor do outro — seja homem ou animal — é recusar, em nós, a própria humanidade. E talvez tudo comece no instante em que um olhar decide não desviar. Quando o silêncio se rompe, ainda que em sussurro. Porque às vezes basta um só gesto de compaixão para que o mundo, por um breve momento, se reescreva.

O cão da noite

O cão da noite ... ... sentinela entre luz e sombra. Teus olhos não brilham — consomem. Teu focinho não apenas cheira — inala segredos. Tu nos lês como vampiros leem a carótida: não o gesto visível, mas a canção oculta no sangue. Conheces o hálito que confessa sem voz, o suor que verte medos, a pulsação que anuncia quedas. Rondas-nos com paciência infinita: não para devorar, mas para vigiar. Farejas fragilidades, reconheces destinos à flor da pele. És sentinela da carne, guardião da alma, entre temor e reverência. Nada tomas — apenas contemplas. Curvas-te à nossa astenia, como quem compartilha o peso secreto da fidelidade. Entendes os muros, as esquinas, os silêncios, as histórias que a esperança e o medo tecem. Seu passo é leve, mas presente: ponte entre o corpo que teme e o espírito que observa. Quando o vento carrega segredos, reténs-nos em silêncio. Quando o medo se adensa na sombra, tornas-te escudo invisível. Há reverência em teu olhar: cada suspiro humano é digno de cuidado. Diante da visão invisível, somos nus e frágeis, beijados pela noite que vigia. Forças caminham conosco. Sem nada exigir, sem nada tomar. Conhecem nossa fragilidade e, ainda assim, escolhem cuidar. Cães da noite, beijados pela escuridão, guardiões do que não se vê. E o silêncio — sagrado e eterno — tudo sabe, tudo guarda. Dr. Ronaldo Rocha Médico veterinário e Jornalista

A lisérgica erva do gato

A LISÉRGICA ERVA DO GATO Dr Ronaldo Rocha Há uma erva que não é apenas erva. Um talo comum, uma folha discreta, mas que guarda em si um segredo antigo. Chamam-na catnip, gatária, erva gateira. Mas esses nomes são apenas véus. O que nela habita, nenhum nome contém. Os gatos a conhecem melhor do que nós. Não a tratam como brinquedo, mas como sacramento. Quando se aproximam dela, algo se rompe. Os olhos se estreitam, os corpos estremecem, e o chão se faz altar. Eles se entregam a um transe instintivo. Como xamãs de pelos eretos em êxtase. Arquejam como se oferecessem a respiração ao invisível. Nesses instantes, não estão vivos, nem mortos, mas suspensos entre ambos. São arautos de um mundo que só eles alcançam. Quem observa de perto percebe: não é brincadeira. É invocação. Cada rosnado, uma palavra de uma língua perdida. E o que eles guardam não é a casa. Mas aquilo que se curva por trás das paredes: o sopro dos sonhos, as vozes dos mortos cansados. Seus olhos — lâminas de lua estilhaçada — não devolvem imagens, mas rasgam a consciência de quem os encara. A quem ousa chegar perto, mostra mais do que deveria ser visto. Pois ao cheirar a erva, os gatos ouvem vozes. Primeiro um murmúrio. Depois, um canto. E, por fim, um clamor que não cabe neste mundo. Quando riem, não riem com suas próprias bocas. É outra boca que sopra dentro deles. É a bruxa, o espectro, a sombra. Falseadora do controle divino, que os usa como mensageiros. Quando desaparecem, não se vão. Dissolvem-se. Como fumaça que paira no fogo apagado. E sempre retornam. Mais atentos. Famintos. Sempre mais próximos daquilo que respira em nós. De noite, rondam. Se deitam ao pé das camas. Velam os que fingem dormir. E quem ousa encarar um gato nesses instantes nunca sabe a verdade. E nós, sem perceber, respiramos seu feitiço. Até que chega o dia em que acreditamos despertar — e descobrimos que já não sonhamos por nós mesmos. É o gato quem sonha dentro de nós. Perito em Medicina Veterinária e Jornalista.

O adeus dos Vagalumes

O adeus dos Vagalumes Dizem que os vagalumes não são apenas insetos. São fragmentos de estrelas que se perderam do céu. Centelhas de anjos que resolveram viver entre nós, lembrando que a escuridão também tem alma. Quando criança, morei no Ganguri de Cima, na Rua da Linguinha, na atual Antônio Pinto — não me perguntem o porquê do nome da rua. Saiam em bandos assim que o céu começava apagar. Soltando seus lampejos na flagrância do campo de lírios. Seres luminosos, brincando no ar como monges em procissão. Riscando enviesado, a escuridão em cintilante ebulição. Naquele tempo, eu acreditava que o escuro respirava, e que no âmago do ébano a luz clareava. Mas a despedida começou cedo. Andam sumidos da beira do rio e sua luz, no pasto, cada vez mais se apaga. Espantados pelo clarão das lâmpadas. Feridos pela artificialidade dos agrotóxicos que maculam a terra. Afugentados das cidades que nunca dormem, onde o silêncio e o mistério da noite não têm mais lugar. Os luzicus , como também são conhecidos, recolhem seu brilho. Porque os homens, acostumados ao ruído; já não sabem rezar junto com o breu. Perdeu a capacidade de ver no escuro — metaforicamente: de ter fé, intuição e poesia. E assim nasceu o êxodo das luzes aladas. Uns dizem que se mudaram para vales onde a noite ainda é verdadeira. Outros acreditam que voltaram ao céu, recusando-se a iluminar corações que se olvidaram da esperança. E a noite — sem os monges brilhantes e sem a coreografia luminosa, órfã ficou. Não sei se eram só insetos. Talvez fossem mensageiros, guardadores de um segredo que não aprendemos a escutar. Talvez o mundo tenha deixado de merecer sua reluzência. Quando o último pirilampo partir, não será apenas mais uma espécie a extinguir. Será também a bênção de acreditar que a noite é sagrada. E talvez só então entenderemos, embora tarde; que os "coleópteros" e sua bioluminescência eram os últimos lampejos que aceitaram habitar conosco

domingo, 20 de julho de 2025

Na Pupila do Instinto O olhar carrega intenções, emoções, instintos — e pode nos tocar, assustar e confundir.O predador olha fixo, intrêmulo, calculado.Não pergunta. Apenas afirma.Lobos, felinos, aves de rapina têm olhos que não piscam, não hesitam. São janelas do instinto em estado bruto.A presa tem um olhar tremeluzente, atento, arregalado. Coelhos, roedores e antílopes tem olhos que escutam, que farejam o perigo. Não têm tempo para contemplar, vivem na beira do susto.Já o gato,p olhar do vigia noturno, como o da coruja e do gato, é profundo, redondo, imóvel e oculto.Não piscam à escuridão, que o absorvem. É o olhar da vigília eterna, da visão que atravessa véus.O olhar da cobra é eterno. Nunca se fecha, nunca repousa, nem se distrai. Observa como quem espera há séculos.Não é um olhar. É uma vigília. Uma presença.O cão nos olha falando.Maleável, expressivo, quase humano.Sabe pedir, saber esperar, sabe amar. Até desconfiar.É um olhar fiel, que nos lê, nos busca, nos escolhe.O gato olha de cima, por dentro, por trás. É o olhar do enigma, da ironia. É o guardião silencioso. Meio fechado, meio desinteressado.Às vezes, nos olha como se soubesse algo que esquecemos.O cavalo carrega nos olhos uma ancestralidade de serviço e beleza.Olhos que relutam em odiar. Existe o olhar de vidro, do peixe, do réptil e do inseto. Olhar eterno, que não se fecha. Não repousa, não se distrai. É uma vigília. Uma presença.São os que olham sem ver. Olhar ausente, sem espelho. Não encontram os nossos.O olhar da memória do elefante é pesado, profundo, do passado. Um animal quase ancestral, ele olha assim, como quem lamenta, como quem pondera, como quem lembra.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Predadores da Própria Moral

Predadores da própria moral

Ocupamos múltiplos níveis na cadeia alimentar e, dentre os predadores, somos os mais temidos. Que diga o boi, o carneiro, o porco e até o sofrido jegue, que, após uma vida de labuta, tem sua carne pendurada para secar.
Sofre também o ganso, entupido de comida até o pescoço, fazendo seu fígado hipertrofiar até doze vezes o tamanho original, produzindo o "foie gras", o patê esteatótico do paladar francês.
Cobaias são sacrificadas em prol da indústria farmacêutica e cosmética. 
Coelhos, ratos, gatos, porquinhos-da-índia e até cães são mortos em prol da ciência, dos laboratórios e da vaidade humana. 
No Pantanal, a caça imoral coloca a onça-pintada na beira do precipício, enquanto o tráfico de animais silvestres os arranca brutalmente de seus habitats.
A violência contra os animais não se limita à gastronomia e aos laboratórios. Nos lares, o desrespeito é voltado aos cães. Segundo a "Humane Society International", em famílias marcadas pela violência doméstica, os animais são frequentemente maltratados, violentados ou mortos. 
Na agroindústria, o sofrimento é sistemático: seres sencientes são torturados até o abate, suas lágrimas são transformadas em lucro. 
Os animais, quando causam dor, fazem-no pela sobrevivência, seguindo as leis da natureza. Já o ser humano, dotado de consciência e capacidade de escolha, pratica a crueldade movido por ganância, futilidade e prazer. 
No entanto, à medida que a sociedade evolui, cresce também a consciência sobre o impacto dessas práticas e a necessidade de mudança.
Como afirmou Schopenhauer: "A assunção de que os animais não possuem direitos e a ilusão de que nosso tratamento para com eles não possui significância moral são um ultrajante exemplo de inumanidade."
Se a compaixão é a única garantia de moralidade, então talvez precisemos, sem demora, revisitar nossos valores.
Ronaldo Rocha - Medicina Veterinária UFRRJ / Jornalista ABJ

Quando o Silêncio Late

Quando o silêncio late

Tem coisas que a gente finge que não escuta. Como aquele barulho estranho na casa ao lado, o canto funesto do urutau ou um distante latido na neblina de Cãodinópolis.
Era um silêncio atroante que não vinha de um canídeo qualquer, mas de algo fantasmagórico que gelava a espinha e dava vontade de chorar, sem saber por quê.
Parecia ser uma daquelas velhas histórias para deixar a gente com medo — tipo o homem do saco ou a loira do banheiro. Mas, com o tempo, vi que o latido não era exatamente sobre o medo, era sobre o silêncio ensurdecedor. 
Em Cãodinópolis, o tempo parecia imutável. Rituais antigos eram seguidos à risca e qualquer desvio era visto como um insulto à tradição. Nada se perguntava e nada se respondia. Tudo “sempre foi assim” e pronto. 
Mas aí o Border collie Lord achava que não era bem assim. Rosnava quando mentiam, uivava quando calavam. Era tido como um cão contestador, o herege de quatro patas, o que rompia com a cumplicidade do silêncio.
Lord era o símbolo da denúncia, da presença que insiste em ser ouvida mesmo quando fingem não escutar.
Ao latir, denuncia não somente o que era dito, mas o que é escondido pela omissão coletiva.
Então, fizeram o de sempre com os que pensam diferente: apagaram-no. Sem  violência explicita, mas com o cruel castigo do abandono, do exílio social. Não é preciso matar para controlar, basta invisibilizar.
Hoje, quando a cidade fica silenciosa demais, se ouve um latido baixo, uivante, distante, quase sussurrante. Não sei se é real, pode ser só saudade do silêncio que não ouvi.
Ou quem sabe é o ignorado Lord, lembrando que o silêncio também é escolha — e que há momentos em que calar é uma forma de violência. Na sociedade de Cãodinópolis o silêncio não é só paz, também é conivência com a sujeição. Omitir-se  muitas das vezes é tomar partido.
Mas há outros Lords por aí, uivando na neblina, na esperança de que alguém escute, ou, quem sabe, também resolvam latir.

Ronaldo Rocha - Médico Veterinário UFRRJ/Jornalista ABJ

Perfume de sangue

Perfume de Sangue

Desde os primeiros passos humanos, convivemos com um inimigo discreto, quase invisível, que nos fareja com maestria ancestral. 
Os mosquitos ceifam vidas em silêncio, matando mais do que as guerras. Um milhão de mortos anualmente. Cinquenta bilhões ao longo da história humana. Parece uma maldição biológica que acompanha a humanidade.
Muito antes de nós, Homo sapiens, os Homo erectus já eram farejados por esse minúsculo assassino. No âmbar do Líbano, repousam fósseis de 130 milhões de anos no período Cretácico. Interessante é que são machos hematófagos que, atraídos pelo perfume das árvores, ficaram eternizados na resina.
Eles nos escolhem pela cor da roupa, pelo calor do corpo, pelo bailar invisível do dióxido de carbono que exalamos ao expirar. Se deliciam com o ácido lático do nosso suor e não resistem a certos aromas da pele. Possuem células nasais que decifram fragrâncias com precisão mortal.
Só as fêmeas do Aedes sugam sangue, buscando suas vítimas ao amanhecer e ao entardecer. Ficam mais ativas na lua cheia, parecendo pequenas vampiras.
Nossa pele exala uma substância conhecida como "decanal", é derivada do ácido sapiênico, um perfume exclusivo da pele humana, que para elas é irresistível.
 Talvez um dia possamos usar esse aroma como isca, desviando-as de nós. Quem sabe silenciar seu olfato afiado, desligar seu “GPS químico” e, assim, conter as terríveis zoonoses que os mosquitos espalham pelo mundo.
Enquanto isso, seguimos exalando o perfume que elas adoram e, pontuais e precisas, vêm buscar nosso sangue para maturar seus ovos.
Ronaldo Rocha - Médico Veterinário UFRRJ/ Jornalista ABJ

Comunicação sem voz

Comunicação sem voz

Bagunça era o cachorro que se sentava diante da porta quinze minutos antes de alguém voltar da rua, pontual e impassível. Não errava uma, mesmo chovendo, trânsito engarrafado ou greve de ônibus. Ele sabia. Não sei se era cheiro, vibração ou essa tal telepatia emocional que alguns defendem. Mas era real. Bastava olhar nos olhos dele para entender que alguma coisa estava sendo dita, mesmo em silêncio. 
Os animais têm instintos e sentidos muito aguçados, percebem vibrações da terra antes de terremotos ou enchentes e conseguem diagnosticar algumas doenças humanas através do olfato. Há quem acredite que tudo é energia, e que os animais estão mais sintonizados com esse fluxo do que nós, distraídos pela internet e pelos brinquedos do mundo. A verdade é que os animais carregam um tipo de sabedoria intuitiva que não se ensina, somente se compartilha. Eles nos observam com olhos que, aos poucos, vão moldando seus hábitos aos nossos. Aprendem horários, reagem ao tom da nossa voz, entendem gestos e suspiros. Associam tristeza com colo, ansiedade com porta fechada e felicidade com passeio. Não porque entendam nossa língua, mas porque sentem o que vai dentro da gente.
No entanto, há um preço nessa convivência tão íntima. Quando o lar está em crise, eles adoecem. Refletem nossas angústias e excessos. Alguns até esquecem de ser bichos. Passam a viver como gente, dormindo em camas, usando roupinhas, vendo tv e tendo até redes sociais. Perdem o faro da natureza, o instinto de matilha. Em troca, ganham crises que não sabem nomear. 
Enquanto isso, os gatos nos olham de canto, meio superiores, um pouco distantes, como quem diz: "não me peça para ser mais do que sou".  
Eles resistem. Talvez saibam haver limites na relação entre espécies, e os respeitam. Ainda assim, essa troca silenciosa persiste. Um cão não precisa de palavras para saber quando precisarmos de companhia. Um gato, quando resolve deitar ao nosso lado, talvez diga mais que mil conselhos. É nessa ausência de palavras que reside o mistério: os animais compreendem o que esquecemos. E nos lembram, todos os dias, que existe afeto sem linguagem e comunicação sem voz. 

Ronaldo Rocha -
Médico veterinário e jornalista.

Onde dorme o medo

Onde dorme o medo

Criaturas aterradoras vagavam noite adentro em Cachoeiras de Macacu desde tempos imemoriais.
Em cada canto esquecido, histórias assombradas emergem da escuridão. Falam de disformes híbridos, cuspidos de alguma fenda aberta na epiderme da realidade, arrastando-se entre o palpável e o imaginário.
O Baku, no Japão, é um glutão esfomeado por sonhos humanos. É um quimérico medonho, formado pelos fragmentos de grotescas criaturas. Vagueia invisível sobre a cama dos que dormem, devorando com avidez seus sonhos perturbadores.
Se em terras distantes o Baku devora os pesadelos, em Cachoeiras, outras criaturas se alimentam do silêncio da noite e as histórias rastejam como heranças malevolentes. Há quem ainda jure que, nas gélidas madrugadas de inverno — que acordam os cachorros antes do galo cantar —, um cortejo de penitentes embalado por deprimentes cânticos se arrastava pelo leito onde passou o trem, até a aprazível Boca do Mato.
O lobisomem cachoeirense não era irreal, era autêntico: tinha carne, tinha cheiro, tinha tez pálida e também parentesco. Seu nome era sussurrado, quase inaudível, entre os dentes cerrados da população.
Na Boa Vista, uma mula descabeçada vagava à procura de sua cabeça decapitada, sua jugular jorrava lamento em lugar de sangue.
O desatento cavaleiro, que ousasse passar tarde da noite pelo escuro bambuzal do Boqueirão, sentia o baque repentino de um pequeno menino em sua garupa. O moleque era lodoso e frio como pedra de rio. Nem reza braba conseguia abrandar o arrepio e o silêncio interrompido.
Essas histórias se revelavam nas rodas de conversas, entre mordidas na mariola "Banassuit" e tragos ardentes da cana de banana "Banadrink".
Realidade e lenda são faces de uma mesma sombra. Em silêncio, compartilham o que carregam.
Suas histórias não precisam de testemunhas, bastam-se com o medo que semeiam.

Ronaldo Rocha - Médico Veterinário UFRRJ / Jornalista ABJ

Filhos da fome


Nos confins do tempo algo escapou das entranhas do mundo. Não era besta e nem homem, mas um exército de seres invisíveis — os Parasitas Sombrios.
Não rugem, não voam, não uivam à noite. Eles não  falam, eles entram silenciosos, rastejam para dentro do corpo pela da boca e pelo sangue. Encravam-se na mucosa do intestino, sugando o néctar vital e espalhando suas fezes ali mesmo, no festim do suco digestivo No intestino bebem não só o suco intestinal, mas também o sangue.
Os parasitas externos não se escondem: carrapatos que grudam como cola,  pulgas que se multiplicam como febre, sarnas que deixam a pele do animal em pandarecos. 
Dizem que, quando a infestação é grande, o animal não dorme, não come, fica pálido como um lobisomem.
Mas o mais temido de todos é o Carrapato mãe, uma criatura que geram centenas de filhos que já nascem sedentos por sangue. Um só banquete e a febre se instala. A doença do carrapato é mais que doença: é o espírito quebrado, a alma arrastada, corpo em frangalhos pelas exaustão. 
Mas entre todos há um que reina com crueldade: o grudento carrapato. Reza a lenda que sua picada leva consigo mais que dor — leva a febre, a tristeza e a morte da 
Dizem que, ao beber o sangue, a fêmea grávida carrega consigo a maldição, transmitindo-a a cada ovo que gera. E assim, geração após geração, o ciclo do mal se perpetua.
O homem não está a salvo desses parasitas e seus malditos nomes: leishmaniose, febre maculosa, borreliose, Lyme, doenças que marcham junto com a morte, de forma lenta e impiedosa.
E assim, entre sombras e sangue, a lenda dos parasitas segue viva. Pois onde há vida, dizem, há também aqueles que dela se alimentam.
Ronaldo Rocha - Médico veterinário UFRRJ /Jornalista ABJ

Parabéns. Cachoeiras de Macacu

Parabéns, Cachoeiras de Macacu

Em 15 de maio, o tempo fez uma pausa para aplaudir você.
Terra amada, onde o verde abriga os sonhos, o rio espelha a alma, e a brisa neblinada carrega lembranças — como folhas soltas na aragem da saudade.
Você não é só um ponto no mapa: é lar, é afeto, é abrigo e poesia.
Em seu leito, trilhos de ferro conduziram sonhos, rasgaram montanhas e uniram destinos.
O lento “Rápido” e o nostálgico “Expresso”, mesmo devagar, deixaram ecos na sua memória — em cada estação esquecida, em cada dormente adormecido.
O batuque dos carnavais e os confetes coloridos ainda vibram com o tempo em que navegava, em sua nau, o lendário pirata Calixto.
Às margens da encachoeirada água do velho Macacu, você é mais que lugar: é sentimento que na serra tem abrigo, é o majestoso jequitibá — altaneiro e altivo.
És mais que chão: és poesia que o ar respira. És memória e liberdade. És amor que não se tira.
E, nestes 346 anos de existência, celebramos com exaltação tudo o que você foi, é e ainda será.
Que venha o futuro, com novas conquistas embaladas pelo amor do povo que você acolheu.
E quem sabe, talvez um dia, entre tuas montanhas e vales, o apito do velho “Jaú” volte a soar — não apenas sobre a bitola estreita do seu caminhar, mas sobre os trilhos da esperança que há de te abraçar.
Feliz aniversário, Cachoeiras.

Ronaldo Rocha - Médico Veterinário - UFRRJ / Jornalista - ABJ

A carraça escarlate



Dizem que, bem antes do homem aparecer, das fronteiras e das guerras, algo se ergueu das entranhas ardentes da terra.
Um sopro escuro irrompeu pelas raízes do mundo, trazendo com ele os parasitos do caos.
Entre eles, um se alçou como soberano do sangue, o temido Carrapato.
E ao seu lado, entre pele e febre, reina a carrapata Escarlate. Mãe das febres e senhora das infestações. Marcha, onde o mato ardeu e o solo se perdeu, seguida pelas larvas vis, vindas de ovos contaminados, ungidos pela febre maculosa.
Sua prole é um frenesi de alucinados famintos por sangue.
Onde a floresta se cala, eles marcham. Onde a vida recua, eles dominam.
O carrapato se alimenta do fogo, do gado solto, do pasto desmatado e do cachorro sem cuidado. Seu ciclo de vida sempre recomeça. Silencioso. Invisível. Implacável.
O bicho não corre, não pula. Tampouco voa. Paciente espera. Como promessa partida. Como praga esquecida.
O carrapato é um aracnídeo, parente próximo da aranha, ácaro e escorpião.
A mãe Carrapata gera centenas de filhos num só parto. Sua prole nasce aos milhares, de um só ventre, espalhando-se como poeira maldita. E cada vez que o calor aumenta e o pasto some, ela volta mais forte, como se vingasse a terra ferida.
Os micuins são larvas tão pequenas que o olho mal pode ver, até que já seja tarde demais.
Uma picada, a febre. Outra, a fraqueza. Mais uma e o corpo cede.
O mal não respeita cercas. Nem muros. Nem espécies. A gente menos ainda.
Maculosa. Anaplasmose Babesiose. Lyme e Erliquiose são suas principais zoonoses.
Se uma coceira aparecer e a febre subir depois de um passeio no mato, tenha cuidado, um carrapato pode estar em seu corpo agarrado.
O mundo vive em ciclos de infestações. Cada vez que os sinais da terra são ignorados, retornam para reequilibrar o pulso vital. A matriarca Escarlate é sempre a primeira a voltar. Onde a vida pulsar, lá ela estará.
Ignorada, ela volta. Alimentada, ela reina. E quando reina, pode até matar.
O carrapato é como o mundo. Nunca foi embora de verdade.
Ronaldo Rocha - Médico veterinário UFRRJ/Jornalista ABJ.

O olhar que rasga a máscara


Há quem diga que os animais veem o que nossos olhos já esqueceram.
Que escutam o que silenciamos, percebem o que ainda não sabemos nomear.
Sentem o que não dizemos. Leem o que tentamos esconder.
Em muitas tradições, acredita-se que alguns animais conseguem perceber nossas emoções e a energia que carregamos. Possuem uma sensibilidade aguçada, que vai além do palpável, da palavra. Percebem dimensões da existência que escapam à racionalidade humana.
Cães e gatos, por exemplo, captam alegria, bondade, tristeza — e até a maldade disfarçada de gentileza. Dizem que percebem o que escondemos até de nós mesmos. Sentem antes que saibamos. Leem entre os silêncios.
Nobres de alma e profundos no olhar, os cavalos são usados em terapias por sua capacidade de espelhar o interior humano. Não julgam, apenas refletem.
Também os golfinhos são associados à cura e à conexão emocional profunda, atravessando com leveza os oceanos turbulentos das emoções humanas.
Corujas, lobos e águias, guardiões de sabedorias ancestrais, são vistos como seres que enxergam além do tempo e da matéria.
Os animais respondem à nossa luminescência interior — à energia sutil que emitimos — porque percebem quem realmente somos. Seus olhos rasgam as máscaras que vestimos no cotidiano. Sentem nossa luz, sua ausência e até o esforço que fazemos para mantê-la acesa.
Aproximam-se quando estamos em paz e se afastam quando opacos de nós mesmos, mergulhados em nossos conflitos internos.
São atraídos pela presença serena, pela autenticidade, pela verdade. E se retraem diante da dissonância entre o que mostramos e o que somos. Para eles, a verdade não se disfarça.
Os cães percebem quando alguém se aproxima com intenções que não ressoam com a nossa energia. E quando somos atacados por forças do malévolo — densas, escuras, invisíveis.
Alertam, mesmo sem palavras. Protegem, mesmo sem promessas.
A borboleta carrega um dos sinais mais pujantes.
Ela emerge da ruptura. De uma criatura rastejante, nasce algo leve, livre e belo.
Aproxima-se de nós quando estamos em transformação. Sua presença é um anúncio sutil de renascimento.
É o arquétipo vivo da metamorfose.
Quando as asas de uma Lepidoptera batem ao nosso redor, talvez seja para lembrar que algo em nós está pronto para voar. 
Será isso intuição, ou algo mais antigo que a linguagem?
Ou será que, no fundo, eles apenas nos enxergam como realmente somos?
Ronaldo Rocha 
Médico Veterinário/
Jornalista