sexta-feira, 19 de maio de 2023

Brasil e brasil

Brasil e brasil Ronaldo Rocha De Jeremoabo a Canudos no sertão baiano, são quase cem quilômetros de estrada rasgando um inóspito caminho de areia entre pedras e carrascais. Depois de cinco horas em duas rodas, sob um sol escaldante e entre facheiros, coroas-de-frade xique-xiques e mandacarus, chego ao arraial dantes habitado pelo magérrimo beato Antônio Conselheiro e seus desvalidos. Seus habitantes sobreviviam da roça e de rebanhos coletivos, principalmente dos subprodutos das cabras, que além de matar a fome lhes vestiam e calçavam. Em um hotel na nova Canudos, descansado da extenuante viagem pelo solo cascalhoso da caatinga, encarei um apetitoso ensopado de macaxeira e carne de bode, o que me fez lembrar da amiga poetisa soteropolitana Lourdinha Araújo em nossas andanças pelo sertão nordestino no saudoso Fiat 147. Após três derrotas dos militares, inclusive a do "corta cabeças" coronel Moreira César, o arraial foi trucidado, culminando com a morte de mais de vinte e cinco mil caatingueiros fugidos dos coronéis dos latifúndios improdutivos e do esquecimento da igreja. Apoiado num cajado e envolto em uma esfarrapada túnica azul, o rábula messiânico interpretava a Bíblia de sua maneira, não obedecendo nem bispos, nem padres e nem freiras. Em Canudos, onde o exército republicano entrou pelo cano, senti o texto de "Os Sertões" de Euclides da Cunha lampejar a minha mente, afligir meu coração e aguçar as viagens da minha imaginação. O nome Canudos foi alcunhado pelo inimigo, devido a presença de uma espécie de bambú com formato de canudo, comum na região. Originalmente a morada daquele povo sofrido era conhecida como Belo Monte, próxima ao raso da Catarina, localidade encrustada no ardente coração da caatinga, outrora refúgio de Maria Bonita e o rei do cangaço Lampião, e também abrigo da "ararinha azul de lear", psitacídeo hoje na rota da extinção. Calafrio na memória senti no "Vale da Morte", onde entricherado o general Arthur Oscar, munido de canhões de codinome "matadeira", aniquilaram aqueles pobres fanáticos sertanejos. Cartuchos corroídos pelo tempo, ainda são encontrados na aridez do solo esturricado pelo calor. Quando a estiagem assola o sertão, da velha Canudos submersa pelas águas do Vaza-Barris, emerge a torre da igreja que teima em ficar, como se não quisesse que sua história fosse afogada. Há quem diga que o represamento do rio foi para dissimular aquela chacina. Com o término da guerra, os soldados esquecidos e sem o soldo prometido, foram morar no morro da Providência, que viria a ser a primeira favela brasileira, situada na região portuária do Rio de Janeiro. Favela é uma planta urticante comum nos morros de Canudos. Daí a origem do nome, trazidos pelos ex-combatentes às esquecidas comunidades fluminenses.

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